Todos os tutores, em vários momentos do dia a dia, já se depararam com os cachorros olhando fixamente. Muitos se perguntam: “Por que meu cachorro fica me encarando?”. O olhar às vezes é meigo e carinhoso, às vezes é ansioso e tenso.
Não importa o que estejamos fazendo – lendo um livro, cozinhando, regando um vaso, etc. –, basta desviarmos a atenção e lá estão os peludos nos observando atentos. Em algumas ocasiões, parece que conseguimos “decifrar” o que eles estão querendo dizer.
Muitas vezes, os cachorros encaram os tutores porque querem brincar, porque estão com fome ou para avisar sobre alguma coisa “fora da ordem”. Mas há aqueles momentos em que eles simplesmente olham, sem nenhum motivo aparente: um mistério insondável. Para nossa sorte, a ciência está descobrindo por que os peludos fazem isso.
Olhos nos olhos
Alexandra Horowitz, professora de Cognição Canina no Barnard College da Universidade Columbia (Nova York, EUA), relata em suas publicações que o fato de os cachorros encararem os tutores sempre intrigou os pesquisadores.
De acordo com os etologistas (especialistas em comportamento animal), o olhar fixo para outros animais não é frequente na natureza. A forma como os nossos cachorros nos encaram é bastante incomum, já que a atitude revela um provável desafio.
Entre os lobos, ancestrais dos cães, as encaradas quase sempre são evitadas, como forma de evitar um conflito. Olhar fixamente para os líderes da alcateia é um gesto equivalente a bater com uma luva no rosto dos rivais, nos séculos 18 e 19: este era um convite formal para um duelo.
Para evitar os conflitos, os lobos, que são animais gregários (assim como nós e os cachorros, entre outros), costumam desviar o olhar. Os ancestrais dos nossos peludos são colaborativos e quase nunca procuram confrontos entre os membros do grupo.
Portanto, encarar os tutores é uma forma de interação mais recente. Olhar para a face dos companheiros está presente entre primatas superiores e algumas outras espécies, mas é rara entre os canídeos. Então, por que os cachorros desenvolveram esta nova habilidade?
As explicações
De acordo com Horowitz, a convivência entre cachorros e humanos foi se tornando mais e mais sofisticada. Inicialmente, as duas espécies trabalharam com a caça conjunta, unindo as habilidades dos cães (agilidade, força física, dentes e garras) com as humanas (produção de ferramentas, divisão das tarefas, etc.).
Com o passar do tempo, graças à versatilidade dos cães, que são capazes de se adaptar às mais diversas condições, eles assumiram outras tarefas: guarda (de pessoas e, bem mais tarde, do patrimônio), pastoreio, combate, resgate, etc.
Desta maneira, surgiram as raças caninas – algumas imensas, para enfrentar qualquer adversário, algumas minúsculas, para caçar roedores em tocas e minas. Em comum, a maioria dos cachorros também assumiu funções de proteção pessoal e companhia.
Hoje em dia, praticamente todos os cachorros são adotados para conviver com os tutores. Eles não são mais convocados para a segurança e vigilância, apesar de continuarem exibindo características de proteção e controle.
É muito provável que, ao final da última Era Glacial, há cerca de 15 mil anos, os humanos já tivessem desenvolvido a linguagem facial. Nós costumamos usar o “face a face” quando conversamos com pessoas próximas e até quando queremos atrair a atenção.
Desta maneira, os primeiros cachorros parceiros dos humanos podem ter sido selecionados a partir da capacidade de encarar e, com isso, trocar informações. Outra hipótese igualmente válida é que eles já tivessem esse hábito na vida selvagem e perceberam os benefícios em mantê-lo no nosso convívio: trata-se de uma relação comensal, com vantagens para as duas espécies.
Desde então, a vida dos melhores amigos dos humanos se tornou muito mais fácil (e a nossa também). Muitos partilham os mesmos espaços dos tutores (às vezes, dividem até a mesma cama), mas, mesmo entre os que vivem nos quintais, a rotina é determinada e controlada pelos “chefes da família”.
Horowitz explica que, no cotidiano, nós determinamos toda a sequência do dia: a hora de comer, beber, fazer as necessidades fisiológicas, brincar, descansar, passear, exercitar-se, etc. Todas as tarefas e atividades são definidas pelos humanos – e cabe aos peludos identificarem e decidirem o que fazer.
Em outras palavras, os tutores são o centro do universo dos cachorros. Este é o motivo principal pelo qual eles nos encaram: para descobrir o que irá acontecer na sequência e para sondar a nossa disponibilidade.
Evidentemente, os cachorros têm preferências próprias e muitos peludos são independentes e persistentes: a teimosia é a característica de muitas raças caninas. Mas, mesmo um akita mal-humorado ou um buldogue inglês que foge a todo custo das atividades físicas,
Checando o bom humor
A habilidade dos cachorros em interpretar a disponibilidade dos tutores foi muito além. Com os séculos de convivência, eles conquistaram a capacidade de entender o que estamos sentindo, através das nossas expressões fisionômicas.
Os cachorros também desenvolveram expressões faciais próprias – a maioria é derivada da capacidade da espécie de mover as sobrancelhas e orelhas. Um estudo do etologista americano Stanley Cohen identificou animais com mais de cem expressões fisionômicas e corporais. Eles não falam, mas sabem se comunicar muito bem.
O olhar canino é uma adaptação do olhar humano, característica também presente nos chimpanzés, orangotangos e gorilas. Através da observação, os cachorros passaram a imitar os tutores; posteriormente, eles criaram um elenco próprio de gestos, caras e bocas para “falar” conosco.
Evidentemente, as encaradas foram encorajadas pelos tutores. Ao trocar olhares, nós conseguimos perceber que os peludos encontraram o rastro de uma presa ou identificaram uma ameaça iminente. Esta troca de olhares reforçou o comportamento, que se tornou gradualmente mais complexo e sofisticado.
Alguns tutores acreditam que, ao nos encararem, os cachorros conseguem entender os nossos sentimentos e preocupações. Eles realmente conseguem descobrir quando estamos ansiosos, tristes e desanimados. Os peludos também são capazes de identificar algumas indisposições físicas e emocionais dos tutores.
Na pior das hipóteses, quando encara os tutores, o cachorro mais arredio e independente está coletando informações, para definir as estratégias seguintes. Os gatos – segundos colocados na preferência humana – também fazem isso, mas com demonstrações muito menos efusivas.
Em resumo, os cachorros encaram os tutores pelas seguintes razões:
- eles querem alguma coisa – os peludos podem estar observando o nosso lanche ou percebem que está na hora da caminhada diária, por exemplo;
- eles querem carinho – além das necessidades básicas, os cachorros sabem dar e receber carinho na interação com os tutores (alguns fazem isso até mesmo com pessoas estranhas). Um olhar fixo pode render bons cafunés e eles sabem disso;
- eles perceberam alguma mudança – as encaradas são úteis para identificar o estado de humor dos tutores. Com isso, os cachorros decidem como se comportar: brincar, fazer um agrado, aconchegar-se, etc. Eles possuem formas próprias para dizer: “eu estou aqui”;
- eles estão com dificuldades para entender – um som estranho, um movimento diferente na rua, um cheiro inusual, são situações em que os cachorros nos encaram. Eles querem garantir que está tudo certo, apesar das mudanças no ambiente – ou então, estão se preparando para fugir de algum perigo;
- eles querem aprender – durante os treinos, se os cachorros encaram os tutores, eles estão demonstrando interesse na atividade. Querem aprender mais, imitar gestos e sons. Este é um sinal de que o adestramento pode seguir para níveis mais sofisticados.