Eles foram criados como cães de luta, mas os pit bulls são tão ferozes como dizem?
Entre os mais de 50 milhões de cachorros que vivem no Brasil, os pit bulls somam pouco mais de 20 mil. Mesmo assim, eles despertam medo por onde passam. Os cães da raça criaram fama de agressivos, violentos, até mesmo assassinos (destronando os dobermans, que ostentavam este título anteriormente). Mas os pit bulls são tão ferozes assim?
Não existem dados oficiais sobre ataques de cães a pessoas no Brasil, mas o Ministério da Saúde estima que ocorram cerca de 400 mil mordidas moderadas e graves por ano. Apenas 50 casos envolveram pit bulls, mas as agressões foram sérias, inclusive levando algumas vítimas à morte.
Pit bulls, ferozes ou não?
Os pit bulls já foram formalmente banidos em oito países – inclusive a Grã-Bretanha e a França. No Brasil, a raça enfrenta tentativas de eliminação em diversos estados. Em São Paulo, estes cães só podem sair às ruas com focinheira e guia curta, para evitar acidentes. A fiscalização, no entanto, é praticamente inexistente.
A resposta para a pergunta-título é afirmativa: sim, os pit bulls são animais ferozes. Aos cães da raça foram desenvolvidos, ainda no século 19, nos EUA, para brigar até vencer – ou caírem nocauteados.
O pit bull é um descendente direto dos antigos bull-and-terriers, cães criados na Inglaterra a partir de cruzamentos entre buldogues e terriers antigos, já extintos. O bull-and-terrier foi criado para a rat baiting (luta contra ratazanas), badger baiting (luta contra texugos), caça e rinha de cães.
O objetivo inicial era dar combate a texugos e ratos que infestavam não apenas as áreas rurais, mas também as ruas de Londres: era preciso ter um cachorro feroz, que fosse resistente o bastante para dar combate às pragas.
Billy, um bull-and-terrier britânico, ficou famoso em 1823 por ter abatido cem ratos em menos de cinco minutos. De acordo com a revista “Sporting Magazine”, Billy era um animal de pequeno para médio porte, com apenas 11 kg.
Mas, ainda no século 18, uma diversão dos britânicos era soltar dois cães em uma rinha (pit, em inglês) e observar os animais se engalfinhando, muitas vezes até a morte. O chamado “esporte sangrento” foi banido apenas em 1835.
Atualmente, os pit bulls tendem a morder sem aviso prévio e quase nunca largam a presa sem a intervenção do tutor. A agressividade da raça é uma característica herdada – está nos genes dos cachorros –, mas a responsabilidade também recai sobre o adestramento.
A raça foi desenvolvida para atacar touros – eles mordiam o focinho dos bovinos e não largavam por nada. Para isso, era necessário coragem, força e muita agilidade (característica incomum nos bull-and-terriers). Ainda hoje, estes cães são famosos pelos ataques de surpresa, alta resistência à dor e boa visão frontal.
Diversos estudos vêm sendo realizados para entender a ferocidade dos pit bulls, todos ainda bastante recentes. De acordo com pesquisas da Universidade Cornell (Nova York, EUA), ainda não se sabe se a base da agressividade está nos genes ou no treinamento.
Os cruzamentos
A coexistência de humanos e cães é antiga: existem registros de ossos de cachorros enterrados juntamente com os de seus tutores datados de 14 mil anos atrás (mas a convivência deve ser ainda mais antiga).
Os homens pré-históricos provavelmente selecionaram os lobos mais dóceis e obedientes para ajudá-los nas tarefas de caça, em uma época de poucas presas – estávamos em plena Era Glacial. Desenvolver cães ferozes é uma atividade relativamente recente.
Nestes milênios de convívio, os humanos desenvolveram centenas de raças caninas, através de cruzamentos seletivos – a Federação Cinológica Internacional (FCI) reconhece 344 raças. Os peludos se especializaram na caça às mais diferentes presas, vigilância, tração, pastoreio, mas também foram usados na guerra e no ataque aos inimigos ou a populações que estavam no caminho dos guerreiros.
A violência
Qualquer cachorro pode exibir características de violência e agressividade. A espécie está classificada entre os carnívoros, animais que caçam as refeições diariamente; para serem predadores, é importante que sejam violentos.
Por outro lado, os lobos são também animais gregários, isto é, eles vivem em grupos dotados de organização complexa e sofisticada. Cães e lobos não atacam indiscriminadamente, mas seguem as regras do bando – e, em casa, o líder do bando é o tutor, coadjuvado pelos demais membros humanos da família.
Mesmo assim, cães podem atacar – e não apenas os pit bulls. O estresse é o principal fator que gera a violência. Animais isolados, entediados e amedrontados (principalmente) tendem a reagir. Vale lembrar que cachorros são fortes, resistentes e persistentes.
Dor e desconforto também são motivos para a violência. No caso de animais que apresentam mudanças súbitas de comportamento, os tutores devem procurar sinais de doença ou de trauma.
O comportamento competitivo é uma das principais causas – e os pit bulls são animais extremamente competitivos. Caso haja mais de um cão na casa e dois ou mais forem dominantes, eles naturalmente disputarão a liderança: ameaçando, rosnando, atacando e mordendo – são as armas disponíveis para os cães.
O ciúme também pode desencadear episódios de agressão. A maioria dos cães tolera a presença de crianças (mesmo as menores) e alguns gostam bastante de cuidar delas. Mas uma mudança súbita dos tutores – por exemplo, não poder mais circular em alguns ambientes – pode gerar um ciúme descontrolado.
Os cachorros gostam da rotina. Qualquer alteração no seu cotidiano pode ser motivo para a agressão: afinal, eles estão sempre alertas. Os peludos podem atacar prestadores de serviços, entregadores, visitas e até voltar o medo e a raiva para os parentes próximos, em casos de perigo iminente (ou assim considerado, como uma queima de fogos ou uma disputa de carros na vizinhança).
O importante é acostumar os pets desde filhotes às variações de ambiente da família. É preciso escolher um animal sociável, caso a família receba visitantes com frequência. nas casas com crianças, estas devem ser apresentadas com cautela, até que os cachorros se acostumem à presença. O treinamento precoce é a melhor maneira de evitar agressões.
Os pit bulls
Muitas raças caninas não sobreviveriam na natureza. Algumas, por terem se tornado apenas animais de companhia e passeio. Outras, como é o caso do pit bull, por serem excessivamente agressivas: este temperamento provavelmente impediria os relacionamentos na matilha e com outros bandos.
A raça foi desenvolvida para o combate a pragas, mas rapidamente passou a ser utilizada em esportes sangrentos semelhantes às touradas. Os “campeões” eram mantidos isolados, muitas vezes sem alimento, para se mostrarem mais competitivos.
Foram justamente esses campeões que foram aproveitados nos cruzamentos: quanto mais agressivo, mais indicado para a reprodução. Os ancestrais dos atuais pit bulls são justamente os mais ferozes e agressivos, mesmo porque os menos “aptos para o trabalho” simplesmente sucumbiam nas arenas.
“Pit bull” significa literalmente “rinha de touros”. Na verdade, o nome oficial da raça é american pit bull terrier (terrier americano das rinhas de touros). “Terrier” é o nome dado aos cães que escavam a terra para capturar ou desentocar as presas.
De acordo com o padrão da raça, pit bulls são cães de médio porte, atléticos e musculosos, resistentes e autoconfiantes. Eles apresentam altos níveis de energia e, também por isso, não devem ser confinados em espaços pequenos, condição que aumenta o estresse – e, consequentemente, a agressividade.
A herança terrier dos cães da raça favorece a predisposição para a agressividade, especialmente contra outros animais. O instinto de caça dos pit bulls é elevado e eles precisam de adestramento e sociabilização para se desenvolverem ajustados e equilibrados.
Mas, ainda de acordo com o padrão da raça, os pit bulls não são agressivos com humanos, devendo ser receptivos inclusive com pessoas estranhas – característica que os contraindica para as atividades de vigilância e segurança.
O padrão diz ainda que o pit bull é autoconfiante, determinado, corajoso e cheio de alegria. A raça gosta de agradar e é entusiasta. Em função da sua agressividade contra outros animais, os pit bulls requerem adestramento e treino de obediência. Qualquer característica que contrarie esta descrição é, portanto, indesejável.
Hipóteses
Ainda não são conhecidos os motivos reais da ferocidade dos pit bulls. Diversas outras raças foram desenvolvidas para o ataque, mas, com o passar do tempo, elas se tornaram dóceis e até pacatas, como é o caso do buldogue inglês, que também já frequentou as arenas de esportes sangrentos.
Estudiosos traçaram três hipóteses para explicar a agressividade dos pit bulls. Ainda não há confirmação de nenhuma delas e os estudos continuam sendo realizados por vários pesquisadores (inclusive no Brasil, onde a Unicamp possui uma análise de longo prazo).
A primeira hipótese decorre do fato de que os pit bulls atacam preferencialmente idosos e crianças – ela explicaria os ataques a pessoas conhecidas. Nos EUA, onde há estatísticas confiáveis, as crianças são o alvo preferencial. Neste caso, os cães da raça poderiam atacar simplesmente para caçar: eles escolheriam as presas mais indefesas, reproduzindo o “comportamento da floresta”, em que os lobos perseguem preferencialmente os filhotes e os animais com dificuldades físicas.
Um estudo da Universidade da Pensilvânia (EUA) avalia a possibilidade de que os pit bulls apresentem deficiência de serotonina, neurotransmissor responsável pela estabilidade emocional. O fato já foi constatado em cães autores de ataques, mas ainda não se sabe se esta é uma característica racial ou de apenas alguns indivíduos.
A terceira hipótese avalia a seleção por temperamento. Interessados em cães de rinha, os primeiros criadores teriam eliminado dois comportamentos comuns a cachorros e lobos: advertir antes de atacar e cessar o ataque quando o adversário se rende.
Esta é uma possibilidade remota, porque animais tão ferozes – verdadeiras máquinas mortíferas – não existem na natureza. A atitude é desprovida de sentido social e hierárquico, o que inviabilizaria a raça no médio prazo.
Gameness
Trata-se de uma característica observada em diversas raças caninas, como o rottweiler e o doberman, além do pit bull e de seus primos próximos: american staffordshire, bull terrier, etc. Akita, chow-chow e até mesmo o boston terrier também são exemplos.
Gameness é uma qualidade dos cães de combate, selecionados para desenvolver traços de avidez, destemor e perseverança. Com a proibição das rinhas e as restrições cada vez maiores às caçadas, as linhagens do gameness foram redirecionadas para os esportes – corrida, escalada, agility, etc.
As linhagens mais modernas do pit bull, no entanto, não estão associadas ao gameness, mas a competições de conformação, como porte e postura, beleza, obediência, etc. Estas linhagens começaram a se desenvolver nos anos 1970, quase duas décadas antes da chegada em massa dos primeiros cães da raça ao Brasil.
O primeiro pit bull “residente” no Brasil foi Platboy, um cão sem pedigree importado dos EUA em 1986 (antes disso, há registros de pit bulls no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, mas não há confirmação de que eram animais puros). A popularidade da raça, por aqui, só surgiu no final da década de 1990.
Os primeiros pit bull das linhagens modernas eram red nose (“nariz rosa”, sem pigmentação no focinho, trufa e mucosas). O termo surgiu para diferenciar os pit bulls “modernos” dos ancestrais, chamados de black nose (nariz preto), em tese mais agressivos.
No Brasil, EUA e em diversos outros países, os pit bulls foram selecionados pela agressividade, resistência à dor e imprevisibilidade. Com este projeto, muitos canis desenvolveram feras implacáveis: mesmo com a proibição das lutas de cães, elas continuam acontecendo em vários pontos do mundo.
Por outro lado, cada associação de criadores seguiu critérios próprios. Por isso, até hoje, o padrão oficial da FCI não estabelece restrições para a cor dos olhos, da pelagem e da trufa.
Criador e criatura
Seja como for, a eficiência dos cruzamentos é indiscutível. Selecionando os indivíduos mais tranquilos e dóceis para o acasalamento e esterilizando os filhotes que apresentam tendências mais agressivas, os criadores vêm obtendo animais cada vez mais sociáveis.
Se os genes apontam para a violência e predação, o ambiente pode atenuar a herança genética. Os sinais de agressividade podem ser detectados precocemente e corrigidos (ou reprimidos) com um bom adestramento.
A existência de pit bulls extremamente ferozes, no entanto, indica que o comportamento deve estar associado ao treinamento. Muitos tutores adotam cães da raça justamente porque eles são agressivos e estimulam estas características.
São os “pit boys”, verdadeiros responsáveis pela agressividade e violência. Neste caso, os resultados de cruzamentos seletivos (para abrandar o temperamento) e o descarte dos animais violentos (para reprodução) seria eficaz apenas no longo prazo.
Isto, no entanto, já aconteceu com outras raças caninas. Nos anos 1970, a “fama de mau” recaía sobre os dobermans. Nos anos 1970, foram rodados nada menos do que sete filmes (todos nos EUA) realçando a personalidade cruel destes cães.
Atualmente, os dobermans são considerados cães tranquilos – inclusive, esta é uma das melhores raças (ao lado do samoieda) para o cuidado com crianças pequenas. É provável que, em algumas décadas, os pit bulls também se tornem tranquilos como os animais de outras raças.
O Kennel Club Paulista e a Associação Cinológica do Brasil registram o pedigree de pit bulls provenientes de apenas 40 canis, dos mais de 200 instalados no país. Atualmente, para ser registrado nas duas instituições, os cães passam por testes de comportamento e são avaliados por juízes de cinofilia e veterinários especializados.
O comprometimento de muitos criadores brasileiros atenuou inclusive os projetos de lei sobre pit bulls e rottweilers que tramitam no Congresso Nacional. Atualmente, as propostas eliminaram especificidades de raças, propondo normas de posse responsável para cães de todas as raças e mestiçagens.