Muito mais do que outros animais domésticos e de estimação, como cavalos e gatos, os cachorros refletem a personalidade dos seus tutores. A ciência já reuniu evidências sobre o tema. Mas por que isto acontece especificamente com os cães?
Antes de tudo, é preciso definir personalidade: um conjunto de características psicológicas que determinam os padrões individuais de pensar, sentir e agir. Ela parte de algumas características inatas e se desenvolve com os estímulos positivos ou negativos presentes no ambiente.
A personalidade dos cães
Todos os animais superiores exibem comportamentos comuns a todos os indivíduos da espécie, com algumas características decorrentes da influência do meio (e, no caso dos humanos, também da estrutura sociocultural).
Os cachorros primitivos deram origem a diversas raças (a Federação Cinológica Internacional – FCI – reconhece 344, divididas em 11 grupos ou categorias, de acordo com o porte, anatomia e função). Cada raça foi criada para exercer determinadas atividades: caça, guarda, resgate, companhia, etc., em diferentes partes do mundo. As raças brasileiras apresentam pelos curtos, enquanto os cães nórdicos têm pelagem densa e longa, formada por duas ou três camadas, para suportar o frio da Escandinávia e da Sibéria, por exemplo.
Exercendo funções diferentes e vivendo nas mais diversas latitudes – entre os vertebrados, poucas espécies se adaptaram à vida junto ao Equador e aos círculos polares –, os cachorros naturalmente passaram a exibir características diferentes de personalidade.
Por isso, as raças caninas são descritas também com relação à personalidade. Por exemplo, os beagles, criados para a caça em matilha e para latir bastante ao encontrar a presa, são sempre alegres, sociáveis, ativos e muito barulhentos.
Um yorkshire terrier tende a latir pouco, porque os primeiros cães da raça eram encarregados de dar combate a roedores em galerias de minas de carvão na Inglaterra, onde os latidos são quase desnecessários. Mas eles podem rosnar, para assustar um rato (ou uma pessoa que não seja bem-vinda).
Sempre é possível encontrar um cão boiadeiro sociável e carente, mas geralmente eles são independentes, persistentes, teimosos e até dominantes – não há muitas opções além de latidos, uivos e mordidas nas patas para convencer bois e vacas a não se afastarem do rebanho.
Mas, seja como for, existem elementos da personalidade canina que não podem ser explicados pela raça, nem mesmo pela individualidade. Estas diferenças, que podem ser sutis, são reflexos da personalidade dos tutores e do ambiente em que os peludos vivem.
Para entender melhor, podemos citar um exemplo prático: um golden retriever que vive em uma casa cheia de crianças e movimentos, circulará em ruas agitadas e com muitos estímulos (sons, cheiros, etc.) com muito mais confiança e serenidade do que outro cão da mesma raça, mas que vive com uma pessoa solteira ou com um casal que passa boa parte do tempo na rua, limitando as possibilidades de interação.
Seguindo o líder
Uma antiga brincadeira de criança, “Siga o Líder” (também chamada de “Chefe Manda” em algumas regiões do país), consiste na arte da imitação. Um parceiro é escolhido como líder e determina que os demais façam determinados gestos.
Quanto mais difícil for a tarefa, mais participantes são eliminados – e mais pontos o “chefe” acumula. Quem está comandando pode pular em um pé só, girar o corpo, assobiar, dar braçadas no ar e mostrar a língua, atrapalhando a vida dos demais. A brincadeira segue com outro “chefe” e vence o jogo quem ganha mais pontos no final ou depois de um número determinado de lideranças e ordens.
Esta brincadeira já divertiu milhões de crianças e mostra uma característica humana: a capacidade de mimetizar os gestos dos parceiros. Ela tem início com a mera imitação e atinge o objetivo visado. A mimetização consiste em obter alguma vantagem – quebrar um coco depois de observar um parceiro usando uma pedra para facilitar a tarefa.
Entre os animais, a mimetização é uma constante e, como ela também está presente no repertório humano e canino, os peludos trataram de aproveitar a oportunidade. Em algum momento, no decorrer da parceria que já dura milênios, eles descobriram o significado das expressões fisionômicas dos humanos.
Este foi um aprendizado extremamente sofisticado, que vai muito além de recolher um graveto atirado ao longe nos momentos de folga. Hoje em dia, eles podem dobrar o pescoço quando estão tentando entender alguma novidade, franzir a testa em sinal de dúvida ou baixar a cabeça e a garupa para sinalizar que são submissos.
Os cachorros aprenderam isso observando os humanos e também os êxitos obtidos por outros cães, seja apontando o rabo para indicar um rastro, seja levantando as orelhas para denunciar um ruído oculto. Com o tempo, a convivência foi se tornando mais próxima e, hoje em dia, os cães desenvolvem um repertório familiar único, que quase sempre reflete a personalidade dos seus tutores.
Isto significa que um cachorro nunca irá aprender a tocar bateria e “bater cabeça”, se a preferência familiar for pelo samba ou a música clássica. Mas ele é capaz de mimetizar o prazer usufruído pelos humanos, seja latindo e pulando ao som de heavy metal, seja uivando suavemente para acompanhar os acordes de uma sinfonia romântica.
A imitação, que também é um recurso cognitivo, também ampliou a capacidade de aprendizado dos cachorros. Há pelo menos seis mil anos, eles são capazes de realizar determinado gesto não apenas imitando-o, mas seguindo comandos verbais e corporais.
Mesmo os cães mais dispersos, tenazes e independentes são capazes de aprender algum truque – não se trata das ordens básicas, necessárias à convivência, mas de apenas algumas concessões que eles fazem para agradar os tutores – e fazem isso tudo porque gostam de nos agradar.
Para se levantar sobre as patas traseiras, um cachorro aprende o comando “em pé”, acompanhado do gesto da mão espalmada movimentando-se de baixo para cima. Depois de algumas repetições (sempre recompensadas em caso de acerto, para motivar o aluno), ele sabe que deve ficar de pé tanto ao ouvir a palavra, quanto ao visualizar o gesto.
Isto parece ser apenas um truque corriqueiro, mas é uma apropriação, por parte do cachorro. Ele aprende este e outros gestos para deixar os tutores satisfeitos. E, como “there is no free lunch” (não existe refeição grátis, em inglês), os peludos sabem que humanos satisfeitos são pródigos em petiscos, agrados e brincadeiras.
Um estudo científico
Pesquisadores da Universidade Estadual do Michigan (EUA) demonstraram, em um estudo publicado em setembro de 2020, no Journal of Research in Personality, que a maioria dos cães assume os mesmos traços gerais de personalidade de seus tutores. A pesquisa comprovou também que a personalidade canina, assim como a humana, é moldada com o passar do tempo.
Com relação às mudanças, elas ocorrem principalmente quando ocorrem grandes modificações na vida, como a morte de alguém muito próximo (que pode inclusive ser outro pet), a transferência para outra família ou a adoção depois de um longo período de abandono.
William Chopik, psicólogo e professor universitário, um dos coordenadores da pesquisa, explicou a descoberta: “Quando nós passamos por grandes mudanças, os traços da nossa personalidade podem mudar radicalmente. Descobrimos que isto também pode acontecer com os cães – e em um grau surpreendentemente grande”.
O professor explicou que o estudo, que envolveu 1.665 pares (tutores e cães de 50 raças diferentes), tinha como objetivo inicial verificar a formação e evolução da personalidade canina. Mais de 90% dos animais voluntários, considerando apenas os que passavam ao menos parte do dia interagindo com os tutores, assumiram traços da personalidade dos seus humanos.
No momento da entrevista inicial, mais da metade dos cães estudados (58%) ainda eram filhotes, enquanto pouco menos de 10% da amostragem total já eram idosos (seis anos ou mais). Um pequeno grupo de controle, formado por 80 duplas, continuará sendo entrevistado até o final de 2024.
Inicialmente, os tutores (todos residentes no nordeste e norte dos EUA) tiveram apenas de preencher um formulário com informações sobre a família, a rotina doméstica e a personalidade dos cachorros. Depois disso, as duplas foram avaliadas pelos pesquisadores em videoconferências e, em alguns casos, em contatos pessoais.
No momento de avaliar os cachorros, os próprios tutores eram analisados por pesquisadores. Durante a entrevista, os psicólogos perceberam que os cachorros, na esmagadora maioria dos casos, exibiam comportamentos semelhantes aos dos seus humanos.
Por exemplo: quando os entrevistados avaliaram que os cachorros são sociáveis e brincalhões, os assistentes da pesquisa também os avaliaram como pessoas extrovertidas, fáceis de lidar. As poucas diferenças de personalidade foram observadas apenas entre os tutores de filhotes ou de cães adultos resgatados recentemente de abrigos.
Foi interessante organizar alguns dados. Por exemplo, os cães se adaptam com extrema facilidade. Eles se apresentam mais ou menos sociáveis e alegres à medida que os tutores mantêm uma rotina previsível.
Por causa desta capacidade de adaptação, os pesquisadores esperavam que a personalidade canina fosse mais estável, mas eles reagem à ausência, à mudança de hábitos, às condições físicas dos tutores e à disponibilidade para sair e passear.
Em outras palavras, os cães também mudam muito, sem que isto signifique algum tipo de transtorno de personalidade. Mesmo mantendo-se saudáveis, eles se encaixam em regras e situações novas quase sempre de maneira positiva, mas o estudo também registrou casos de aumento de agressividade, teimosia e indiferença.
A pesquisa revelou que os cachorros tendem a refletir a personalidade dos tutores e mudar o comportamento, eliminando, adaptando ou substituindo algumas atividades, especialmente:
- no avanço da idade dos tutores e cães;
- nas semelhanças de aptidões;
- nas alterações causadas pela presença do cachorro na rotina doméstica.
Por outro lado, os cachorros também são capazes de operar mudanças drásticas de personalidade rapidamente. Foi possível identificar, nas entrevistas com os tutores, que cães inquietos, agressivos ou agitados mudavam completamente em casos de um parente doente em casa; como regra geral, os peludos se desinteressaram das atividades cotidianas e permaneceram aos pés do seu humano.
Isto é relativo não apenas à lealdade dos cães, que são naturalmente guardiães, mas sobretudo à capacidade de perceber a incapacidade (mesmo momentânea) dos seus tutores. Esta percepção revela também uma capacidade de empatia e alteridade bastante rara, mesmo entre humanos.