Um cachorro sem raça definida (SRD) aparentemente foi salvo, por um grupo de crocodilos, de afogamento e do provável ataque de outros predadores. O episódio ocorreu na Índia, nas águas do rio Savitri, em Mahad (Estado de Marahastra, no centro-oeste do país).
A vítima foi perseguida por outra matilha de cães abandonados e acabou em um beco sem saída, na margem do rio. O cachorro ficou entre a cruz e a espada – no caso, as escolhas eram: o ataque dos “colegas”, o afogamento ou tornar-se a próxima refeição dos répteis;
Operação resgate
Um grupo de três crocodilos-persas (Crocodylus palustris, uma espécie comum em todo o subcontinente indiano) estava descansando junto a uma curva do rio, quando observou o ataque – e o mergulho involuntário do cachorro.
A visão deve ter sido apavorante. Em poucos segundos, os répteis mergulharam e nadaram em direção ao cachorro. Dois crocodilos se mostraram mais gentis e dóceis. Aparentemente, eles convenceram o terceiro membro do grupo a ajudar o peludo.
Os crocodilos-persas arrastaram o cachorro com o focinho para a margem do Savitri, colocando-o em local seguro, longe da correnteza. O episódio foi registrado em agosto de 2023, na época da seca, mas, mesmo assim, o rio é profundo e largo o suficiente para impedir qualquer reação da vítima.
Dois fatos ajudam a explicar parcialmente o salvamento: os crocodilos estavam descansando na margem do rio, o que indica que eles não estavam com fome. Além disso, o comportamento dócil mostra que eles estavam saciados no momento em que viram o cachorro, uma presa fácil, especialmente na água. Mesmo que ele conseguisse boiar e respirar, não seria páreo para os répteis, que ocupam o topo da cadeia alimentar nas águas fluviais indianas.
Uma explicação possível
O salvamento do cachorro foi acompanhado por pesquisadores que estudam o comportamento senciente (capaz de sentir e expressar emoções) dos crocodilos-persas (a espécie também é conhecida como “mugger” (assaltante, em inglês).
O grupo já identificou outros comportamentos gregários entre os répteis. Há registros de pesca cooperativa, uso de iscas para caça e outras formas de interação, contrariando a descrição tradicional da classe zoológica.
Os répteis em geral são sempre descritos como animais desprovidos de interações sociais, com exceção da territorialidade, acasalamento e eventuais cuidados parentais, limitados aos primeiros dias de vida dos filhotes.
O estudo parece contrariar a descrição. Os cientistas publicaram o registro do salvamento do cachorro no Journal of Threatened Taxa (JoTT, ou jornal dos táxons em risco, em português; táxon é uma unidade taxonômica, cujas categorias principais são: reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie).
Um resumo do salvamento foi publicado na edição de agosto de 2023 do JoTT (vol. 15, nº 9). Editado pela Universidade de Mumbai (a cidade é capital de Maharashtra). Trata-se de uma publicação internacional com acesso aberto – os artigos são periodicamente revisados por zoólogos e ambientalistas de diversas universidades no mundo inteiro.
Os pesquisadores acreditam que o crocodilo-persa esteja demonstrando “empatia emocional”: além da interação entre indivíduos (fato incomum para a maioria dos répteis), ele também seria capaz de identificar emergências, como o caso do cachorro em apuros.
E, desde que não haja interesse imediato em devorar a presa, o crocodilo-persa poderia ser capaz de estabelecer relações ecológicas, como comensalismo (quando duas espécies convivem, mas apenas uma é beneficiada) e mutualismo (quando os dois parceiros recebem benefícios).
O crocodilo
O crocodilo-persa é uma das três espécies de crocodilianos encontradas na Índia e em países vizinhos, como Bangladesh, Paquistão e Irã) (as demais são o gavial e o crocodilo-de-água-salgada). Os machos podem atingir até 4,50 metros (em média, eles chegam a 3,70 metros) e pesam entre 250 kg e 300 kg. As fêmeas são menores: 3,20 metros e 200 kg.
A espécie é considerada bastante agressiva. O crocodilo-persa possui 19 dentes superiores de cada lado da boca. Ele prefere pântanos e rios mais rasos. A espécie também é tolerante à água salgada, apesar de não viver junto ao mar.
Trata-se de um animal lento: a velocidade em curtas distâncias não excede os 8 km/h (mas chega ao dobro disso ou mais na água). Carnívoro, ele se alimenta basicamente de peixes, mas também ataca lontras, serpentes, aves e mamíferos, aproveitando o momento em que as presas chegam às margens para beber água.
Ele está bem adaptado à vida terrestre. A grande mobilidade permite que o crocodilo-persa migre para regiões relativamente distantes. A espécie também é capaz de perseguir presas em terra e, no verão, pode cavar tocas em terrenos úmidos para se proteger do calor.
O topo da cadeia alimentar, no sul da Ásia, é ocupado pelo tigre-de-bengala (Panthera tigris), talvez o predador mais eficiente do mundo inteiro. Mesmo assim, é difícil que um destes felídeos ataque crocodilos-persas, mesmo partilhando o mesmo habitat. Os répteis, por sua vez, preferem manter distância segura dos gatões.
Explicações e controvérsias
O grupo que vem estudando os crocodilos-persas está cada vez mais convencido de que estes répteis exibem comportamentos gregários e de cooperação. Eles já foram avistados usando iscas para atrair presas, por exemplo.
Estes crocodilos usam gravetos e ramos durante as atividades de caça. Eles sacodem as varas no ar, para provocar a aproximação de garças e outras aves aquáticas. Fazem o mesmo embaixo d’água, para despertar a curiosidade de peixes.
No vídeo, o objetivo dos crocodilos-persas parece realmente ser o salvamento do cachorro. Saciados, eles não teriam motivos para nadar em direção ao peludo em apuros. Um excesso de curiosidade poderia fazê-los se aproximar, mas não empurrar o cachorro quase afogado para a segurança da margem. Seria empatia?
Vale lembrar que os crocodilianos, e todos os demais répteis, além dos anfíbios e dos peixes, são animais pecilotérmicos: eles regulam a temperatura corporal por meio da temperatura ambiente. Esta é uma desvantagem durante o inverno e nas noites frias, mas, ao contrário das aves e mamíferos, eles não despendem energia para aquecer o corpo: por isso, comparativamente, eles comem muito menos do que nós.
Por isso, nenhum réptil desenvolveu técnicas sofisticadas de caça. Eles apenas circulam (na água ou em terra firme) até encontrar um provável almoço. Só então eles correm para capturar a vítima.
O comportamento observado entre os crocodilos-persas que vivem em Maharashtra, portanto, levanta dúvidas e indagações. Haveria condutas inimaginadas entre os répteis, que nós não conseguimos identificar inclusive por preconceito?
Os antigos dinossauros já foram descritos como animais pesadões e lentos, mas hoje se sabe que parte das espécies era ágil e muito eficiente. Já foram encontrados igualmente ninhos comunitários (em que várias fêmeas depositam os ovos e todos protegem os futuros indivíduos do bando).
A conclusão do vídeo parece indicar uma tentativa de salvamento bem-sucedida: o cachorro conseguiu voltar para a margem com ajuda dos crocodilos-persas, que mergulharam, se aproximaram da vítima e a arrastaram para a segurança.
Nem todos os zoólogos e especialistas em comportamento animal, no entanto, estão convencidos. Desde que foi publicado, o artigo publicado no JoTT recebeu réplicas e revisões durante todo o mês de setembro de 2023.
Muitas críticas estão relacionadas à qualidade do vídeo, que não permite identificar a ação e, principalmente, a motivação dos répteis. Além disso, avaliar as condutas e reações de apenas três indivíduos não permite projetar uma alteração comportamental para toda a espécie.
Duncan Leitch, um biólogo da Universidade da Califórnia (EUA) especializado em neuropsicologia dos répteis, faz uma crítica ainda mais contundente. Para o cientista americano, as conclusões dos pesquisadores indianos usam uma definição humana para inteligência emocional, bondade e cooperação.
Já foram identificados, em outras observações, crocodilos-persas nadando em círculos ao encontrarem grandes cardumes, criando uma espécie de vórtice. Com isso, os peixes são arrastados para fora da circunferência – ou seja, diretamente para a boca dos répteis.
Neste caso, os crocodilos teriam aprendido uma nova estratégia de caça muito mais efetiva: um benefício para a espécie. Esta capacidade de aprendizado, de acordo com parte dos biólogos, já seria surpreendente, em se tratando de répteis.
Isto é bem diferente, no entanto, de imaginá-los interrompendo o repouso para socorrer um cachorro que está se afogando depois de ter sido encurralado por uma matilha estranha. Neste caso, os crocodilos estariam sendo apenas solidários, sem nenhum benefício para eles.
Descobrir que répteis são capazes de empatia (a capacidade de colocar-se no lugar de outro ser, perceber suas angústias e tentar aliviá-las) obrigaria a mudanças profundas em tudo que se conhece atualmente sobre o comportamento animal.
Apenas algumas espécies de aves e mamíferos apresentam a capacidade da empatia e, mesmo assim, ela não é universal: o egoísmo, aliás, é muito frequente. É muito provável que o salvamento do cachorro esteja mais para a fantasia do que para a realidade. Seja como for, o vídeo pode ensinar duas ou três coisinhas importantes para muitos de nós.