É uma predisposição só identificada antes em humanos: cães reconhecem palavras ditas por
estranhos.
Todos os tutores sabem disso: os cães reconhecem diversas palavras – o número pode chegar a algumas centenas. Discute-se muito se eles entendem o significado real dos vocábulos ou apenas a maneira como elas são pronunciadas.
É fato conhecido que os cães entendem pelo menos algumas palavras, como as usadas em
comandos simples, e são capazes de reconhecer a voz dos membros humanos da família. Isto é fácil para eles: em uma alcateia (de onde os nossos peludos vieram), cada lobo apresenta uma
vocalização diferente para latidos, ganidos e uivos. Eles se reconhecem pela “voz”.
Seja como for, o senso comum sempre teve como verdade que os cães entendiam vozes familiares, sem conseguir compreender a estrutura fonética da linguagem humana. Uma pesquisa revelou que os pets são mais inteligentes do que imaginávamos.
O estudo
Pesquisadores da Universidade de Sussex (Inglaterra), em associação com a Universidade de Lyon (França), avaliaram um grupo de 70 cães de diversas raças e idades. Os animais foram estimulados a ouvir apenas sílabas soltas, sem nenhum sentido semântico, pronunciadas por pessoas estranhas. O estudo utilizou as vozes de 14 mulheres e 13 homens desconhecidos para os pets.
Na Psicologia comportamental, habituação consiste em uma forma de aprendizagem não associativa em que ocorre uma diminuição automática na intensidade de uma resposta a um estímulo repetitivo, que capacita o aprendiz a ignorar o que lhe é habitual e focar a atenção na novidade.
Os pesquisadores descobriram que os cães reconhecem termos de pronúncia semelhante (no
estudo, foram usadas as expressões “hid”, “who’d” e “had”, por exemplo), mesmo quando
pronunciados por pessoas diferentes, desconhecidas.
A partir das primeiras palavras usadas no estudo, os cachorros conseguiram identificar os falantes de termos semelhantes, como “hood” e “heard”. Eles começaram a se apropriar de sons sem significado – e isto talvez seja a primeira etapa para usar estes sons para construir outras palavras. Eles são capazes de formar uma representação de voz. Em outras palavras, os cachorros entendem o que é a linguagem e para que ela serve – para a comunicação entre os seres. De acordo com a teoria da educação, a próxima etapa deste aprendizado é descobrir de que forma a linguagem é usada para os indivíduos se comunicarem.
Isto quer dizer que os pets conseguem generalizar os fonemas (sílabas pronunciadas),
independentemente da pessoa que os pronuncia. A conclusão é de um dos autores do estudo, David Reby, professor de Etologia da Universidade de Lyon.
Até a conclusão deste estudo, publicado em dezembro de 2019, pensava-se que esta capacidade de categorizar as palavras sem treinamento prévio era um atributo exclusivo da inteligência humana. Mas os cachorros também apresentam esta capacidade.
Em estudos anteriores, outros animais, inclusive chinchilas e ratos, haviam demonstrado capacidade de aprender semelhante à exibida pelos cachorros, mas tiveram de passar por um período de treinamento.
Isto significa que outros animais conseguem entender instrumentos humanos, desde que sejam
incentivados a isso de maneira adequada. O estudo franco-britânico demonstrou que os cachorros, ao aprender sem treinamento prévio, utilizam estruturas próprias de aprendizado – não se trata de mera imitação ou condicionamento.
A formação da linguagem
O reconhecimento dos fonemas é um dos pré-requisitos da aquisição de um idioma. Especula-se que os humanos, cerca de 300 mil anos atrás, começaram a pronunciar fonemas soltos, geralmente relacionados a substantivos (céu, fogo, água, etc.) antes do início do desenvolvimento da formação de palavras.
A utilização de sons isolados para indicar necessidades e perigos prementes deu origem ao
desenvolvimento da linguagem como nós conhecemos hoje. Depois de indicar “ah” para água, “cah” para caça”, etc., a linguagem se sofisticou progressivamente e os fonemas se entrelaçaram, formando palavras.
Isto levou provavelmente algumas dezenas de milhares de anos. Os cães, que convivem conosco há milênios, estão aparentemente aproveitando os conhecimentos construídos pelos humanos em benefício próprio, isto é, para construir o próprio conhecimento. Quando alguém diz: “só falta falar”, referindo-se a um cachorro, está mais próximo da realidade do que imagina.
Efeitos práticos
Os cachorros conseguem se apropriar da linguagem, mesmo que ela não seja um atributo da
espécie. Mais que isso, eles conseguem decompor palavras e prever o significado de termos
parecidos.
Em um ambiente rico em conversas humanas, os cães – sempre ao lado dos tutores – começam a
desenvolver a capacidade de representações mentais de algumas palavras. Eles “veem” termos
como “casa”, “chuva”, “bronca”, etc.
Eles também conseguem decompor as palavras para identificar quem as está pronunciando. Assim, quando um estranho saúda a família com um “bom dia”, eles não reconhecem o falante, mas sabem que ele se refere a coisas como sol, passeio, brincadeiras – as referências que eles construíram anteriormente para “dia”.
Os cachorros interpretam as palavras de forma semelhante à humana. Eles usam o lado esquerdo do cérebro para identificar as palavras e o lado direito para captar as nuances, como entonação, tonalidade, volume, etc. A junção do som com as nuances indica o significado correto: é o uso total do cérebro.
Em outras palavras, os nossos peludos entendem o que dizemos e por que dizemos. Eles sabem, por exemplo, a diferença da expressão “bonito, hein?” proferida depois de uma sessão de banho e tosa e as mesmas palavras ditas depois de fazerem alguma arte.
O uso do lado direito do cérebro é especialmente útil quando os cachorros não conhecem as
palavras pronunciadas ou não reconhecem as pessoas que estão falando. É uma forma de
interpretação da linguagem humana.