Será que a cara de culpado do cachorro indica arrependimento e vergonha? Confira algumas verdades e mitos.
Os cachorros sabem quando fazem algo errado? Eles sentem arrependimento, culpa ou vergonha? Seria este o motivo da cara de culpado que exibem quando são repreendidos? A resposta não é tão simples.
Os nossos peludos têm alguma forma de consciência dos seus atos. As ações cotidianas estão mais presentes na memória canina, enquanto as situações esporádicas chegam a passar despercebidas. Eles também são capazes de alguns atos premeditados – inclusive, pequenas vinganças.
Cachorros e humanos
Os cachorros, fundamentalmente, querem agradar os seus tutores. Desde filhotes, eles reconhecem que a família humana é responsável pelo alimento, segurança e afeto, coisas que eles percebiam juntos às mães e, claro, lhes faziam muito bem.
Em contrapartida, eles tendem a ser fiéis, bons companheiros, disponíveis praticamente 24 horas por dia – quem se levanta de madrugada sabe que eles acompanham qualquer membro da família à cozinha ou ao banheiro – e obedientes.
A obediência é a forma de agradecer pelo provimento das necessidades e desejos. Ocorre que, muitas vezes, eles simplesmente ainda não aprenderam o que podem e devem fazer ou não. E, algumas vezes, eles querem demonstrar o próprio “ponto de vista”.
A desobediência – e a consequente cara de culpado dos cachorros – acontece quando:
- eles percebem que fizeram algo errado, mas não sabem exatamente o quê;
- os maus feitos intencionais são descobertos pelos tutores.
Os cachorros, especialmente quando filhotes, não sabem que não podem entrar em casa com as patas sujas, não podem derrubar almofadas e objetos de decoração, não podem pisotear canteiros, não podem enfiar as patas na tigela de água ou ração.
Cachorros não são higiênicos. Nós mesmos só desenvolvemos o conceito de higidez na segunda metade do século 19, quando confirmamos a existência de seres microscópicos – muitos deles, nocivos à nossa saúde. Até então, lavávamos as mãos antes das refeições apenas que o alimento não ficasse sujo de poeira, terra ou areia.
Portanto, os cachorros precisam ser ensinados. Eles nunca entenderão por quê, mas respeitarão a decisão dos tutores de manter as almofadas sobre os sofás e os botões de rosa nos canteiros que enfeitam o jardim.
Mas, eles podem intencionalmente fazer coisas erradas. Quando ficam sozinhos por muito tempo, o tédio pode levar os cachorros a destruir objetos, fazer xixi no tapete, arrancar plantas dos vasos.
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São pequenas vinganças cotidianas, das quais eles quase sempre têm plena consciência – e sabem que os tutores não irão gostar nem um pouco de encontrar a casa revirada e suja. Por outro lado, os tutores não deveriam deixar os cachorros sozinhos por períodos tão prolongados a ponto de entediá-los.
As reações dos cachorros
O tutor chega em casa depois de um longo dia de trabalho. Está cansado, preocupado, irritado. Situações comuns no dia a dia. Tudo o que a pessoa quer é chegar, tomar um banho e jogar-se sobre a poltrona preferida com o controle remoto nas mãos.
Mas, ao abrir a porta de entrada, se depara com uma “cena dantesca”. Os restos mortais do que um dia foi um rolo de papel higiênico jazem espalhados pelos móveis, pelo tapete, pelo piso da sala e da cozinha. os planos de apenas sentar-se e relaxar foram imediatamente tragados pelo ralo.
De forma inconsciente ou não, o tutor se irrita e chama, alto e bom tom, o cachorro – que, em um mundo ideal, deveria ter se comportado bem durante o dia e recebido o “chefe” com carinho e efusões de alegria.
Muitas vezes, o peludo nem se lembra mais da terrível batalha que travou – e venceu – contra o perverso rolo de papel higiênico. O fato aconteceu horas atrás, ele já fez várias coisas depois disso.
Mas, de qualquer maneira, a expressão de raiva e rancor do amigo humano – o rosto carrancudo e, principalmente, o tom de voz – alerta o cachorro de que alguma coisa está muito, muito errada. Instintivamente, ele faz cara de culpado:
- as orelhas se dobram e se afastam para trás;
- os olhos diminuem. As pálpebras deixam espaço apenas para que o pet acompanhe a reação do tutor – e escape para um lugar seguro, se necessário;
- mesmo quase cerrados, os olhos estão brilhantes e atentos; qualquer um poderia perceber o remorso e resignação naquela expressão;
- ele abaixa o pescoço e a garupa, tentando parecer menor do que é – mesmo que seja um São Bernardo;
- a cauda se dobra entre as pernas traseiras.
O cachorro, como um todo, parece confessar o mal feito. É uma posição orgânica: ele admite a culpa, mostra-se arrependido e espera o perdão do tutor, o chefe da matilha, líder magnânimo daquela caverna esquisita que chamamos de lar.
Alguns cães podem esticar-se sobre o chão, como se quisessem se esconder no piso. Os movimentos podem ficar incertos e inseguros. Os pets também podem querer afastar-se da “cena do crime”, uma confissão tácita da transgressão.
Pelo menos, é isso que a maioria dos humanos imagina. O cachorro culpado pode inclusive evitar o contato visual, desviando o rosto e até mesmo escondendo os olhos com as patas dianteiras. Ou arregalar os olhos e piscar insistentemente.
Certo ou errado?
Não importa, no entanto, se o cachorro foi ou não o responsável pelo desperdício de papel higiênico do nosso exemplo. Na verdade, os cachorros percebem que fizeram alguma coisa errada apenas até algumas horas após a ação. Depois disso, eles esquecem o ocorrido.
É importante lembrar que, para um animal de estimação, brincar com um rolo de papel higiênico é apenas uma atividade a mais. Cachorros suam principalmente através da língua e, quanto à atividade mais trivial que envolve o uso do produto, eles acham muito mais simples lamber as áreas sujas.
Sendo ou não culpado, no entanto, o cachorro reagirá à postura do humano. O cachorros pode fazer muitas coisas erradas, mas, em geral, são os tutores que consideram isto ou aquilo como um erro. Portanto, quando você se mostra indignado, o cão reagirá com submissão, independente de entender o alcance da atitude – ou mesmo de lembrar-se de tê-la cometido.
Estudos realizados pela Faculdade de Psicologia da Universidade Colúmbia (Nova York, EUA), publicados em 2019, demonstram que, quando um cachorro é colocado no “banco dos réus”, tendo responsabilidade ou não, eles assumem quase de imediato a postura básica de culpados descrita acima.
O estudo foi realizado com voluntários. Os tutores foram introduzidos em uma sala e orientados a, ao sair e deixar os cachorros sozinhos, dizer para os seus cães que não chegassem perto dos petiscos disponíveis.
Independente das ocorrências na sala, alguns voluntários foram informados de que os cães haviam comido os petiscos, enquanto, para outros, os pets haviam se comportado bem (ou melhor, da forma esperada pelos humanos; em muitos casos, os cachorros apenas ignoraram as guloseimas expostas).
Todos os cachorros reagiram à atitude dos tutores. Quando estes assumiram posturas nervosas, elevaram o tom de voz ou mostraram-se irritados, os pets imediatamente assumiram a posição de culpados, arrependidos e submissos.
Os autores do estudo concluíram que a atitude dos cachorros não estava relacionada às artes e desordens (das quais seriam os autores), nem de um eventual remorso por terem feito alguma coisa errada.
A cara de culpado, com todas as expressões anatômicas relacionadas, é apenas a resposta que os cachorros imaginam ser a mais adequada para demonstrar que respeitam as ordens dos tutores. Eles não entendem o discurso (“você estragou o papel higiênico”, ou “você comeu o que não devia”), mas sabem que aquele é um bom momento para reforçar a submissão aos tutores.
Muitas vezes, quase sempre em função de problemas e preocupações, nós nos deixamos levar pela irritação e reprimimos gestos que, em outros momentos, seriam bem-vindos. Podemos ficar irritados com a festa, os lambeijos, as mordidas leves de cada dia.
Ao serem repreendidos, os cachorros reagem da mesma forma – com cara de culpado –, mesmo que estejam se comportando da mesma maneira como nos recepcionam todos os dias. Muda a nossa percepção, não a consciência do pet.
Cara de culpado: Verdade ou mentira?
Afinal, é verdade ou mentira que a cara de culpado revela consciência de atitudes incorretas, inadequadas ou proibidas? Se o cachorro tiver sido “pego em flagrante”, ele certamente saberá que a indignação do dono está relacionada ao mal feito.
Quando um cachorro faz xixi no tapete à vista dos humanos e é repreendido por isso, a cara de culpado está relacionada ao fato. De qualquer, forma, é preciso ensinar o lugar certo para fazer as necessidades fisiológicas, ficar com o pet junto ao poste ou tapete higiênico, e não apenas gritar quando ele faz xixi na sala.
Quando o “erro” do cachorro” aconteceu horas antes, ou quando ele não consegue perceber que fez algo errado – por exemplo, quando pisoteia um arbusto ornamental –, a cara de culpado surgirá da mesma forma, mas apenas em função da bronca: a repreensão, os gritos, as ameaças.
Os cachorros vêm se especializando há milênios em “comportamento humano”. Algumas atitudes são assumidas por eles de forma mais complexa do que a apresentada por alguns primatas. É o caso, por exemplo, de apontar um objeto diferente ou alertar para um som ou brilho inesperado.
Quando nós estamos frustrados, irritados ou possessos de raiva, os cães entendem que a melhor estratégia é a técnica de apaziguamento. Mas eles não conseguem racionalizar: apenas ouvem os gritos e reproduzem a postura de submissão.
Em uma briga na mata, o lobo mais frágil coloca a cauda entre as pernas para demonstrar submissão e evitar olhar diretamente para o animal dominante. Isto pode ser uma questão de vida ou morte na selva. Em casa, eles simplesmente repetem estes gestos.
Nós somos muito apegados aos nossos cães. Tão apegados que muitas vezes emprestamos reações humanas a eles. No entanto, é importante lembrar que eles são o que são: cachorros. E comportam-se como tal.
Todos os cachorros podem aprender a respeitar um número considerável de normas e comandos. A maior parte dessas respostas, no entanto, é feita apenas para nos agradar, não porque eles descubram que a regra é útil, de alguma maneira torna a vida deles melhor, mais fácil ou confortável.
Um cachorro com cara de culpado não deve ser encarado como alguém que sabe o que deve ser feito e, mesmo assim, faz a coisa errada. Eles não sentem culpa, mesmo que sejam responsáveis por quebrar o vaso, avançar contra o entregador ou esvaziar o pote de biscoitos deixado ao alcance da boca e das patas.
Em outras palavras, os cachorros introjetam ordens e normas ditadas pelos tutores e podem realizar uma série de ações, assim como deixar de realizar diversas outras. Eles fazem isso porque compreendem que o convívio com os humanos traz inúmeros benefícios.
Por outro lado, eles não conseguem entender os nossos conceitos de organização e limpeza. Para eles, almofadas são cômodas para uma soneca, mas também são um excelente sparring para treinar ataque e fuga. Principalmente, almofadas são sparrings.
A melhor maneira de adestrar um cão é com o método de recompensas. Deve-se indicar o que se espera deles e premiá-lo nas primeiras vezes em que ele cumprir as normas.
Por exemplo, um filhote deve ser apresentado ao “jornal do xixi”, levado ao local alguns minutos depois das refeições, incentivado com palavras dóceis (eles não compreendem o significado da maioria, mas percebem o tom afetuoso com que são pronunciadas) e premiado ao fazer o certo, de acordo com a nossa avaliação.
Depois de alguns dias, as recompensas se tornam desnecessárias: eles farão o que os tutores esperam apenas para agradar e receber carinhos e palavras afetuosas. O importante é lembrar que eles podem aprender várias coisas desnecessárias, mas o fato de não observá-las não é necessariamente um gesto de desafio ou uma confissão de culpa.
É preciso abandonar a ideia de que cachorros podem se sentir culpados e imaginar que eles conseguem diferenciar o bem e o mal. Em vez disso, eles estão apenas inseguros e, se o desconforto se repetir muitas vezes, poderá levar a transtornos emocionais, como a ansiedade e a depressão.
Lembre-se: a audição dos cachorros é muito mais apurada do que a nossa. Eles ouvem perfeitamente bem as nossas instruções e ainda melhor os nossos gritos. Elevar o tom de voz, gesticular, falar rapidamente coisas que eles não conseguem entender, podem levá-los à cara de culpado, mas não são adequadas para o adestramento e a convivência agradável para as duas partes.